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Elis Regina morreu por ser viciada em arte


O filme Elis começa com um grito inquietante. “Como nossos pais” preenche as caixas de som de uma forma única; emociona não só pela voz e sensibilidade de Elis, mas por nos revelar, como em um passe mágica, o quanto somos os mesmos, o quanto a vida é repleta de quinquilharias e que a arte é nossa única salvação.


Os 90 minutos de filme nos mostram que os verdadeiros artistas não escolhem a arte, mas são escolhidos por ela. E nos mostram que a expressão artística é como o veneno de um mosquito; penetra nos poros e traz a urgência de uma medicação eficaz: o palco, o frio na barriga, a luz no rosto e os sons da plateia antes de a cortina abrir. Não era as drogas o vício da Elis, era arte. A musicalidade era seu sangue. As drogas eram apenas mecanismos de tempero às suas aptidões. Contudo, em um mundo decadente, cheio de seres monocromáticos, não cientes de suas cadeias, virou uma fuga mortal.


Elis era inquieta, como todo artista. E sua inquietude transbordava ao perceber a tentativa do sistema de arruinar a única salvação que tínhamos: ela mesma, a arte. Artista não assiste o mundo, artista o faz; une, interpreta as dores humanas partindo da sua, desenha a realidade. Por isso, sua voz preenchia os espaços. Seus movimentos eram largos. Sua expressão, gigante; e qualquer tentativa de enquadrá-la em padrões, era assassiná-la.

O apelido, a princípio pejorativo, de Hélice Regina, relacionado aos seus braços que se movimentavam nos palcos, nunca lhe caiu tão bem. Seus sentimentos eram pra fora, pois vinham de alguém preenchida, inteira, dona de si mesmo. Isso é cantar! Cantar é entrega, jogar-se, expressar-se. Estar no palco é sair do cotidiano, é ter corpo grande e mente livre; qualquer atitude contrária é narcisismo, talento falso, equívoco e pirotecnia barata.


Elis vem de um tempo e de uma revelação de que artista mesmo, não sobrevive sem ser o que é, sem dizer o que pensa, sem aprimorar-se. Artista nunca se acha pronto, artista é processo.


A cantora de alma adoeceu por ver o fim. Adoeceu por ser plateia do início de um tempo de caras bonitas e expressões vazias. Tudo o que ela queria era fugir. Não enxergar esse período de palavras ocas, musicalidades fáceis e estupidez aplaudida. Elis não suportou passar pela censura militar e partir para a censura econômica, que iguala, padroniza e aliena.


Quer saber? O mundo não merecia Elis. Ela era muito autêntica para uma época que se contenta com máscaras. Muito inteira para uma humanidade pela metade. Para uns, a droga foi desvio de caráter. Para outros, a liberdade de uma fase que não está preparada para tanta profundidade.


Sobre o filme: a atriz Andrea Horta? Inteira, a própria Elis. Hugo Prata, em sua direção primorosa, te faz pensar na arte e nos tempos bizarros que vivemos. O filme é impecável, tanto que, como no teatro, foi aplaudido. Elis renasceu ou sua alma estava ali.

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