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Ieri, vocalista da lendária banda punk Bulimia, dá entrevista exclusiva ao Bolha Musical!

A Bulimia foi uma importante banda de punk rock formada em Brasilia, lá na década de 90. A banda tornou-se conhecida em todo o país, principalmente entre o público punk feminino, por causa de suas letras de teor sério e político. E essas letras políticas, embebidas num som cru e visceral, foi o que deixou a Bulimia conhecida em toda a cena punk underground. Elas já têm um capítulo reservado a elas na história do punk nacional feminino sem dúvida alguma! A Bulimia acabou oficialmente em fevereiro de 2001, quando a baterista Berila foi encontrada morta na Chapada dos Veadeiros em decorrência de um afogamento, após três dias desaparecida.


Pelo fato de hoje ser Dia das Mulheres --- e principalmente pelo fato de a morte da Berila ter completado 16 anos agora em fevereiro --- o jornalista Rafael Fioravanti decidiu ir atrás da Ieri, a eterna vocalista da Bulimia, para realizar essa entrevista e saber a opinião dela a respeito da cena punk da época.


Bolha Musical: Como vocês todas se conheceram e como surgiu a ideia de montar a Bulimia? Ieri (vocalista): Eu conheci a Bianca e a Silvia, nossa primeira baixista, logo depois de voltar de uma temporada morando fora do país. Costumávamos nos reunir numa comercial da asa sul com algumas pessoas, quase cada fim de tarde das férias de verão de 95/96, para escutar música punk, andar de skate, beber. Eu cheguei empolgadíssima para montar uma banda só de minas. Naquela época, só a Bianca já tocava guitarra, e eu só queria mesmo um microfone na mão para poder falar de feminismo. Começamos uma banda com um amigo na bateria, mas eu saí logo porque não era o que eu queria. Foi só quando a Bianca conheceu a Berila, uma baterista incrível que vinha do metal (mas disposta a tocar punk rock) que pudemos retomar o projeto inicial e conseguimos montar a Bulimia. Logo depois do primeiro show, Naiana entrou no baixo, no lugar da Sílvia. Como você pode ver, a historia da banda que a Bianca escreveu na pagina da Prótons, não é verdadeira. (risos)


Bolha Musical: Como se deu o processo de composição do disco "Se Julgar Incapaz Foi o Maior Erro Que Cometeu" (2001)? Vocês costumavam compôr juntas ou a composição era um processo todo individual? Ieri (vocalista): A parte musical era basicamente feita pela Bianca e Berila. Como já disse, eu estava mais preocupada com as coisas que eu queria dizer. Eu não tinha nenhuma experiência prévia de banda e praticamente zero "conhecimento musical". No começo, ensaiávamos na casa da Berila, já que ela tinha bateria e espaço lá. Passávamos mais tempo conversando e eu fazendo discurso às meninas sobre questões feministas; daí no dia seguinte a Bianca aparecia com uma letra abordando tudo o que eu tinha falado, já que ela era muito mais rápida e experiente nisso. Nenhuma das outras meninas se identificavam como feministas, só eu. Era algo bem novo para elas, e a Bianca e Berila vinham de um mundo bem masculino. As questões que eu colocava e os debates que produzia tinham a ver com uma agenda feminista da qual eu fazia parte pelo meu ativismo. Se você prestar atenção, Bulimia se apresentava como "banda feminina", não feminista. Esse é o porquê. Então, apesar da Bianca ter colocado autoria nas músicas do disco, isso não refletia o processo de composição que a gente tinha. Era um processo coletivo, e, na maioria das vezes, consensual (ainda que não fosse sempre fácil). Acho que o que mais nos unia era a vontade de estar numa banda com essas características. Foi a primeira vez numa banda para mim e Naiana, e a primeira vez em uma banda feminina para Berila e Bianca. Tínhamos razões distintas do porquê estar numa banda exclusivamente feminina, mas esse desejo foi o que nos uniu.


Bolha Musical: E existe algum fato curioso a respeito da gravação desse primeiro disco? Ieri (vocalista): O disco demorou um ano para ficar pronto! Tivemos que gravar o disco inteiro duas vezes, já que a primeira gravação foi pro brejo porque o HD do estúdio queimou e não existia backup! Além disso, naquela época já estávamos distanciadas por questões ideológicas, as prioridades eram diferentes e não conseguíamos dedicar tanto tempo para ensaiar e gravar. Eu não concordei com muitas coisas na produção deste disco e a Bianca fez muitas coisas pelas "nossas costas", como gravar três linhas de guitarra, incluir uma participação do Álvaro e incluir uma música que simplesmente nem era nossa [a música era "Rebeldia Premeditada"]. Esse é um dos motivos pelo qual não falo com ela até hoje. Para mim não representa o som da banda, nosso som era bem mais sujo e cru ao vivo. Nossa demo é muito mais representativa, por exemplo.

Berila, baterista da banda Bulimia, falecida em fevereiro de 2001. | Foto: Facebook

Bolha Musical: E como era a repercussão das músicas nos shows da Bulimia? Ieri (vocalista): No começo não foi nada boa! Vinha gente nos contar que os moleques jogavam a demo k7 no chão e pisavam nela na escola, dizendo que éramos anti-homem. (Risos) O fato é que foi uma ruptura super importante. Ninguém estava acostumado a ver só mulheres tocando numa banda. Mas, especialmente, meu vocal estridente e inepto era o ponto de influência: ou você amava ou você odiava! (Risos) Essa mistura de curiosidade e diferença ajudou com que conseguíssemos tocar, mas também sofremos vários tipos de boicote. Eu falava muito entre uma música e outra. Eu gostava de explicar as letras, animar as meninas a tocar, a se expressarem; dizia bem claro aos meninos que não aceitaríamos mais este lugar passivo que o machismo tinha colocado para nós e que a gente ia continuar a luta de nossas predecessoras insubmissas. Era fundamental para mim que Bulimia não fosse "só" musica, apesar de ser uma banda. Bianca foi a grande responsável pela repercussão a nível mais nacional. Ela que trocava cartinhas, mandou a fitinha para o país inteiro, etc. Deste trabalho dela, surgiram vários contatos super importantes na nossa trajetória. Eu nunca tive a intenção de fazer sucesso e jamais na minha vida pensei que a Bulimia seria tão conhecida anos depois. O que eu queria era sacudir as pessoas, tirá-las da zona de conforto, mostrar que se as meninas quisessem ter uma banda, elas podiam ter! Mesmo que não soubessem tocar! Mesmo que elas tivessem uma voz estridente! Punk sempre foi isso: ir lá e fazer! Até hoje é emocionante para mim ouvir meninas falando como somos inspiração para elas, em vários níveis.


Bolha Musica: E qual foi seu show favorito com a Bulimia?

Ieri (vocalista): Sem dúvidas, meu show favorito foi o último. Se bem me lembro, foi no SESC, 913 sul. Foi um mini festival que nós mesmas organizamos com várias bandas amigas... tinha várias integrantes femininas, mulherada em peso, luta pela legalização do aborto. Era a mulherada envolvida em todas as etapas, com uma mensagem mais claramente política (frutos de muitos debates e mudanças internas). Uma celebração daquela nova cena que tínhamos criado juntas.

"Ieri, vocalista da lendária banda punk Bulimia, dá entrevista exclusiva ao Bolha Musical!" por Rafael Fioravanti | Bolha Musical

Bolha Musical: O disco da banda seria lançado em fevereiro de 2001, mas, infelizmente, a baterista Berila veio a falecer. De volta naquele momento, como você ficou sabendo da morte dela? Ieri (vocalista): A banda já praticamente não existia quando o disco foi para a fábrica. Mas existia todo um investimento feito, material e imaterial, então tínhamos combinado de fazer alguns shows de lançamento e parar com a banda depois. Já tinham acontecido umas brigas, sem muita importância... mas o fato é que já estávamos bem afastadas. Eu estava no trabalho quando me ligaram para contar. Fiquei em choque. A Berila foi a primeira pessoa próxima a mim a morrer e eu tive que convocar um grupo de amigas para dormir em casa, porque eu não queria estar sozinha. Foi uma tragédia. Morte super prematura, em condições horríveis. Berila era uma nadadora exímia, que participava de pequenas competições e tudo.


Bolha Musical: Do que é que você mais sente falta nela? Ieri (vocalista): No começo, Berila e eu discutíamos muito porque tínhamos idéias muito diferentes a respeito do machismo, do feminismo e de várias coisas do mundo. Como tínhamos personalidades bastante fortes, foi todo um processo de adaptação de uma com a outra. A Berila falava as coisas sem pensar e eu sempre questionava tudo, então o começo era puro combate. Mas aí veio o amor por essa personalidade forte e afiada dela, e ela acabou virando a minha melhor amiga no grupo. Eu sinto muita falta dela e ponto.


Bolha Musical: Essa matéria é sobre a Bulimia, mas é principalmente uma homenagem ao aniversário de 16 anos de morte da Berila, que aconteceu em fevereiro de 2001. Faz 16 anos! Então pelo que você sabe/conhece, quais eram as principais influências da Berila (musicalmente falando)? O que a baterista gostava de escutar? Ieri (vocalista): A Berila fazia parte da cena metaleira da cidade e ela escutava muito metal, então musicalmente tínhamos gostos muito diferentes. E acho que é por isso que nem me lembro muito de nomes de bandas.


Bolha Musical: Qual foi o ar que ficou na banda, logo após a morte da baterista? Ieri (vocalista): Na verdade, a banda já estava meio morta, antes mesmo do acidente. Eu estava cada vez mais dedicada a outros coletivos ativistas, feministas e libertários que participava. Tínhamos projetos diferentes de vida e nossas diferenças foram se acentuando. Para mim, já não fazia sentido continuar com a banda e a ideia já era parar depois de alguns shows pra lançar o CD. Perder o contato foi uma consequência "natural".


Bolha Musical: A Berila é uma figura incógnita na Bulimia. Dada a sua morte prematura, aos 26 anos, nem mesmo os mais fanáticos fãs da banda a conhecem direito. O que vale a pena ser dito sobre ela que talvez as pessoas não saibam? Ieri (vocalista): A Berila era muito reservada mesmo. Até mesmo para nós ela era um pouco inacessível. Ela sempre foi muito dedicada e queria ser a melhor em tudo que fazia. Ela amava tocar, amava o trabalho no seu estúdio de body-piercing, e no último ano da sua vida, era uma apaixonada pela natação. Ela nadava quase todos os dias. Berila também tinha muito interesse em ocultismos, mitologia e espiritualidades.


Bolha Musical: E para terminar, como era o cenário musical de Brasília ainda naqueles anos de Bulimia, década de 90? E como está o cenário musical brasiliense nos dias de hoje? Ieri (vocalista): A cena de punk rock e hardcore, especialmente do plano piloto, era totalmente dominada por bandas de caras e com letras machistas. Era patético. Quase toda banda nova que surgia parecia seguir uma mesma formula. D.F.C, Os Cabeloduro e tantas outras. Se você gostava de hardcore, estava lá nesses shows porque não havia muita opção. Eu lembro de sair do pit e ficar resmungando durante as músicas explicitamente machistas. parecia que todo mundo achava isso normal! Nessa época, já estávamos ensaiando, mas ainda não tínhamos feito nenhum show. Dentro da Bulimia eu era a única feminista, então resolvi escrever um panfleto de boicote contra essas bandas e distribuir na porta de um show onde estavam tocando. Nesta ação do panfleto (apesar de muitas ameaças), surgiu o Nada Frágil. Foi um coletivo feminista de debate e ações que, junto com Bulimia, Kaos Klitoriano (banda irmã mais velha, que para nossa felicidade, voltou a tocar), RTL e outras bandas de meninas, fanzineiras e alguns meninos parceiros na luta, conseguimos criar outra cena em Brasilia. Era uma cena menor, mais inclusiva e combativa. Alguns anos depois do fim do Bulimia, fui morar fora do país de novo, desta vez em Barcelona. Estive lá por 12 anos, toquei em três bandas punks diferentes e fiz uma pá de coisas. Eu só voltei a morar em Brasília de novo há quatro meses e ainda estou me acostumando com a cena daqui hoje. Então não me sinto confortável para falar muito ainda.


In memoriam da baterista Maria "Berila" Gandolfo Conceição

(19 de maio de 1974 – 14 de fevereiro de 2001)

"Ieri, vocalista da lendária banda punk Bulimia, dá entrevista exclusiva ao Bolha Musical!" por Rafael Fioravanti | Bolha Musical
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