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Grande reportagem: A Questão Político-Ideológica no Punk (Parte 2 de 4)

Continuação da Parte 1 (clique aqui se ainda não a leu).


Em 26 de fevereiro de 2015, conversei com o pessoal da banda Olho Seco, em um dos estúdios que eles costumam ensaiar, no bairro de Perdizes, próximo à Avenida Pompéia. Na entrevista, eles me falaram um pouco sobre a banda e todo o sucesso alcançado.

“Eu fui num ensaio do Cólera, que eles fizeram na Casa Verde, já que eu sempre quis ir no ensaio deles. Eu falava: ‘pô, vocês não têm uma fita cassete, uma demo [para me mostrar]?’ Eles achavam que demo era coisa do demônio, aí eu falei: ‘pega um aparelho gravador, joga do lado e ensaia.’ A aparelhagem não era tão boa, então ficava legal a gravação. Aí no ensaio do Cólera tinha uma banda lá também tocando, ensaiando numa garagem de rua (aquelas garagens que você abre a porta e já é a rua), e essa banda que estava lá ensaiando chamava-se Osso Oco. E eu gostei do baterista porque o cara era direto, ele não ficava enrolando (...) o som saía mais rápido. Aí quando os caras terminaram de ensaiar, ele ficou na bateria e eu falei pra ele: ‘pô, meu, eu tenho uma letra aqui, você consegue fazer essa levada aí?’ Aí ele começou a tocar, o Redson e o Val [ambos do Cólera] também chegaram, e ali foi formado o Olho Seco.” Em seu rosto, um discreto sorriso de ledice demonstra claramente a mais aprazível lembrança.

A respeito da Ditadura Militar, Fábio Sampaio é bem seco e direto. Toda a banda está sentada à minha frente, um ao lado do outro, em uma sala vazia do estúdio. Os três membros da banda, com exceção do vocalista Fábio Sampaio, bebem cerveja. “Sim, esse período era ainda Ditadura. Nós tivemos alguns problemas, sim. O problema aparecia quando você tinha que levar as letras para serem censuradas. E todas foram censuradas mesmo, não passou nenhuma. Mas, na época, eu estava a fim de gravar um compacto. Eu falei pro Redson: ‘o nome da banda é Olho Seco, eu vou gravar só um compacto e acabar a banda.’ Primeiro, por causa da Ditadura; segundo porque eu achava que não era legal o pessoal de uma banda tocando em outra.”

Em quatro de março de 2015, conversei com o músico Michel Stamatopoulos (conhecido como Sukata), baixista dos Garotos Podres, em seu escritório de direito na cidade de São Caetano do Sul. Ali, em seu prédio de advocacia, localizado na Avenida Goiás, ele me falou um pouco sobre o Garotos Podres.

A banda, formada em 1982, era composta pelo vocalista José Rodrigues Mao Junior, pelo baixista Michel “Sukata” Stamatopoulos, pelo baterista Luis Português, e pelo guitarrista Mauro. Em 2012, às vésperas do aniversário de 30 anos da banda, o Garotos Podres conheceu o seu fim. O término foi inesperado, até porque a banda ambicionava continuar, mas acabou sendo inevitável. O vocalista José Rodrigues Mao Junior, e toda a internet – explicarei isso adiante! –, diz que o fim da banda se deu por uma “divergência ideológica”; em contrapartida, o baixista Michel “Sukata” Stamatopoulos afirma que a razão não foi essa, mas problemas particulares do vocalista. Não cabe a mim mencioná-los aqui.

Por ser professor de história da Universidade de São Paulo e grande conhecedor, diga-se de passagem, de assuntos comunistas, tendo publicado em 2007, como sua tese de doutoramento, um livro chamado “A Revolução Cubana e a Questão Nacional (1868 – 1963)”, o vocalista Mao sempre conheceu o pessoal da mídia independente, e por isso, sempre conseguiu publicar na internet a sua versão da história. Em fevereiro de 2015, enquanto eu me preparava para fazer a entrevista com algum membro da banda, optei, particularmente, em conversar com o baixista Michel “Sukata” Stamatopoulos pelo fato de ele, até então, não gozar do mesmo espaço na mídia para contar a sua versão (um dos pilares não só da democracia, mas também do jornalismo, que consiste em dar voz àqueles que não têm voz). Julgava necessário.

“Nessa década de 80, nós frequentávamos uma praça bem em frente ao fórum de Santo André, que nós chamávamos de praça dos patos. Ali todo domingo pela manhã havia reunião entre o pessoal punk da região do ABC e as gangues da época”, afirma o músico Michel Stamatopoulos. “E eu fazia parte do pessoal daqui do ABC, pelo fato de eu ser de São Caetano do Sul, e eu também ia lá (apesar de não fazer parte de uma gangue em específico). E foi ali que eu tive contato com o Mao, com o Mauro, com o Português, e com centenas que frequentavam o local. Foi ali que a gente se conheceu e também foi ali onde surgiu o convite para que eu fosse tocar na banda. Até então, os Garotos Podres não tinham uma característica, uma personalidade definida de banda. Tinha o Mauro e o Mao, que eram vizinhos ali de Mauá, que tocavam juntos com outros amigos. Por isso que existia uma indefinição da característica da banda. Não havia uma definição punk nem uma definição Oi!, então ainda não havia um direcionamento. Esse direcionamento só passou a existir no momento em que se reuniu os quatros integrantes que deram início a um trabalho realmente profissional.”

Menciono, então, o período militar. Se o punk estadunidense, representado aqui pelos Ramones, e o punk britânico, representado pelos Sex Pistols, possuía total liberdade de expressão, já que os Estados Unidos e a Inglaterra nunca de fato passaram por um período nitidamente ditatorial, o que um punk brasileiro teria a dizer sobre ter “vivido e respirado o movimento” sob uma ótica dita opressora? Vale lembrar que os Ramones nunca optaram por falar abertamente de política em suas músicas. Por mais punk que fosse a atitude dos quatro jovens de Nova Iorque, eles preferiam falar sobre suas vidas, sobre o uso de drogas, sobre seus romances, sobre o estilo de vida que possuíam. De forma geral, a temática punk nas músicas dos Ramones visa mais um lado comportamental – o que é compreensível, já que os Ramones não se inspiraram em um teor lírico político, e sim na política das atitudes de rebeldia (basta lembrar-se que os quatro garotos nova-iorquinos tiveram os Stooges como influência maior). Os Sex Pistols, ao contrário, não tiveram apenas uma atitude política punk, mas também letras de teor político punk. Aqui, no exemplo dos Sex Pistols, basta pegarmos a letra da música “God Save The Queen”, a mais famosa do grupo, que entenderemos a fúria que existe ali. É uma fúria adolescente contra o establishment britânico, ou seja, contra a monarquia da rainha Elizabeth II. Se pegarmos a letra de “Seventeen”, teremos um grito à desordem, um grito tunante contra a necessidade de trabalho (que deve ser visto como um grito ao pré-estabelecido). Se pegarmos a letra de “Anarchy in the UK”, teremos um grito contra a ordem britânica. Se pegarmos a letra de “EMI”, teremos, obviamente, um grito de vingança contra a gravadora de mesmo nome. Em suma, a questão político-ideológica dos Sex Pistols vem na letra (música) e na atitude; enquanto que, no caso dos Ramones, vem só na atitude, mas não na música (o fato de os Ramones possuírem um uniforme em comum, marcado pelo uso de jaqueta de couro, já explica bem isso). E os Ramones mantiveram quase que religiosamente essa tendência – abrindo algumas raras exceções nos anos 80; por exemplo, quando gravaram uma música em crítica à visita do então presidente republicano Ronald Reagan ao cemitério nazista de Bitburg (e isso deve ser visto como um caso isolado na carreira da banda).

Mas voltemos ao músico Sukata e à Ditadura Militar no Brasil. Como afirmei previamente, o Garotos Podres surgiu no começo da década de 80, mais precisamente em 1982. Nesta época, vivíamos ainda sob o governo do então presidente João Figueiredo.

“Queira ou não queira, a música, de uma forma geral, até pela sua harmonia, consegue levar muito mais fácil a mensagem do interesse de seu interlocutor. Então essa característica acaba dando uma conotação de manuseio, de manobra e de direcionamento de massa. Por isso é uma característica, às vistas do poder dominante, deveras perigosa”, diz o músico com grande desenvoltura, vestindo uma camisa social branca e gravata azul-marinho. Ao redor, em seu escritório de advocacia no centro de São Caetano do Sul, há duas bandeiras: uma do Brasil, e outra do Estado de São Paulo. “Esse é o principal motivo de a maior parte dos perseguidos dentro da esfera cultural da época serem músicos; basta olharmos Geraldo Vandré, Gilberto Gil, e outros cabeças de chave da música popular brasileira. A música tem essa característica do flautista de Hamelin. Por isso que [ter uma banda no período da Ditadura Militar brasileira] era uma coisa entre o céu e o inferno.”

Para Michel “Sukata” Stamatopoulos, pertencer ao movimento punk não apenas em uma banda, mas principalmente em uma gangue, era algo bacana, pelo fato de o cidadão estar participando de um contexto político na época. Como ele próprio frisa, “o movimento punk possuía uma forma política por sua negação à cultura do pré-estabelecido”, agora se atente bem a esta parte, “e pela sua negação à cultura da disciplina militar, e não à cultura dominante militar, até porque essa tal cultura dominante militar não existia”.

Em relação às gangues punks da época das quais participou, o músico vai além. “Se analisarmos o contexto do próprio movimento punk dentro de uma gangue punk na época, como as roupas, o corte de cabelo, as posições e hierarquias dentro das gangues punks, não se levantava uma questão de disciplina. Fosse dentro de um quartel ou dentro de uma gangue punk, onde todos pensam que existe uma questão anarquista (da negação do poder, da negação do Estado, da total liberdade) dentro da razoabilidade da relação social entre o convívio, a hierarquia e disciplina sempre foram obedecidas. Eu digo disciplina no sentido de que um horário marcado pela gangue punk era rigoroso, não se podia furar; a caguetagem jamais poderia existir e isso também é intrínseco dentro dos quartéis; o uso de coturnos pela resistência, durabilidade e pelo feitio de um soldado (soldado, aqui, não necessariamente em defesa de uma sociedade ou de uma pátria, mas em defesa de seus interesses).”

Para Michel Stamatopoulos, que participou de gangues punks, o fato de o Brasil estar vivendo em uma Ditadura Militar não era algo necessariamente ruim, já que, dentro das gangues punks, a questão da disciplina (e não de dominantes e dominados) também existia.

Deixando, agora, Michel “Sukata” Stamatopoulos de lado e, por um breve momento, voltando aos integrantes da banda Olho Seco, a fúria adolescente existia e era deveras forte em relação à figura da autoridade. A fúria adolescente, aquela mesma fúria que o vocalista Iggy Pop levava para os shows de sua banda, os Stooges, e a mesma fúria também com a qual os Ramones compunham as suas músicas, influenciando uma geração de jovens ao redor do mundo, era algo de positivo para o movimento punk e era também o grande responsável pela identificação dos jovens com o tipo de música. Assim, eles falam um pouco de seus primeiros contatos com o punk e as bandas que os influenciaram.

Fábio Braga, baixista do Olho Seco, comenta monótono: “para mim, foi quando eu tinha uns quinze, dezesseis anos, e um amigo da rua em que morava me deu uma fita cassete (isso lá por 95 ou 96, eu acho) com Olho Seco e Cólera em um lado e Replicantes, Garotos Podres e Inocentes no outro. Era uma coletânea. Naquela época eles faziam bastantes coletâneas. Esse foi o meu primeiro contato com o punk rock do Brasil.” Agora, Fábio Braga passa a palavra para o guitarrista Ricardo Quattrucci: “putz, tirando os Ramones, que todo mundo falava que era punk e eu, na época, ainda tentando entender o porquê de a banda ser punk e ninguém ter moicano (eu não entendia direito o porquê de todos serem uns cabeludos), meu primeiro álbum de impacto foi quando os Misfits lançaram o álbum “Famous Monsters”. Foi aí que eu fui pesquisar e vi que tinha o horror punk, o punk tradicional, o punk Oi!, etc. Quando passei a conhecer mais a fundo, fui atrás de Black Flag e várias outras bandas. Mas a minha principal porta de entrada mesmo foi Black Flag e Misfits. Os Ramones eu sempre conheci, mas ainda não entendia direito o porquê do punk ali.” Logo que o guitarrista Ricardo Quattrucci pausa para tomar uns goles de cerveja, o baterista Felipe Khaos começa a falar (marcado por uma visível timidez e atimia): “Para mim, foram os Ramones, isso é de lei. E no Brasil, minha influência foram os Ratos de Porão.”

Por mais que hoje tenhamos a liberdade de nos expressarmos livremente, sem a necessidade de passar por um crivo de censura, é visível, apenas pelo olhar deles, que os tempos mudaram. Nada mais é como antigamente. As coisas, hoje, estão mais difíceis, mas, para o vocalista Fábio Sampaio, isso não significa que o punk esteja em declínio. Ele é contundente quanto a isso. “O punk não está em declínio, eu pelo menos acho que não. Sempre que a gente vai tocar tem alguma banda nova tocando junto. Só que hoje em dia, não está nada fácil. É difícil. Tem mais bandas por aí, e quando os mais novos vão tocar, não ganham nada (nem uma ajuda de custo). Aí tem banda que vai desistindo, porque, querendo ou não, tem que pagar os ensaios, comprar baquetas, as cordas da guitarra e do baixo estouram e precisam ser trocadas. Nisso daí tudo vai dinheiro, não é fácil.”

Outro importante fator que colabora para a perda de espaço do punk é a má compreensão de seu universo. Citemos um exemplo: a linha entre punks e skinheads é, será e sempre foi, muito tênue. Até hoje, há quem pense que todo skinhead é racista. Coisa que, perante uma análise mais profunda das raízes do gênero, não encontra fundamento. Veremos isso mais adiante, mas não nos dispersemos.

Continua no dia 10 de junho, sábado da semana que vem, quando publicarei a parte 3.

"Grande reportagem: A Questão Político-Ideológica no Punk (Parte 2 de 4)" por Rafael Fioravanti | Bolha Musical

Acima, foto de 1986 que mostra integrantes dos Ratos de Porão e Garotos Podres. Foto do arquivo pessoal de João Gordo.


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